Um dia desses,
li uma entrevista com uma cientista adventista que defendia que o criacionismo era
a única “ciência” capaz de explicar as origens do universo sem desqualificar os
textos bíblicos. Segundo ela, se a Bíblia ensina sobre o Éden, isso deve ser
verdade, e não dá para ser teísta, sem também crer no criacionismo. É evidente
que esse tipo de afirmação sempre partirá do pressuposto de que devemos, para
sermos cristãos, ler a Bíblia de forma literal. Literalismo e cristianismo,
nessa perspectiva, são irmãos siameses. Mas será mesmo que isso é verdade? Será
que a Bíblia só é a palavra de Deus se for lida literalmente? Eu acredito que
não. Na verdade, eu acredito que existe uma considerável diferença entre ser
fiel ao texto bíblico, tendo-o como palavra viva de Deus para nós (e se é viva
não pode ser estática), e ser literalista. Vejamos.
O literalista
crê que, para a Bíblia ser a palavra de Deus, toda a informação contida nela
deve ser lida e compreendida de maneira literal. Por exemplo, quando ela afirma
que Deus criou o mundo em seis dias, é por que assim foi, ainda que a geologia
já tenha provado “por a mais b” que isso é impossível. É claro que muitos
cristãos diante das dificuldades desse dado, procuram minimizar o problema com
soluções, a meu ver, tão duvidosas quanto à primeira, como a ideia que defende
o dia divino como mil anos terrestres. Mas o fato, é que eu poderia citar
muitos outros problemas insuperáveis (a menos que façamos uma confrontação
honesta desses problemas), como o aparecimento do Sol apenas no quarto dia, o
que per si já constitui uma incoerência
lógica, ou o “justo” juízo divino sobre a cobra (um animal irracional) “possuída”
pelo diabo. O mais curioso é que, tudo isso deveria causar, no mínimo, alguma
curiosidade nos cristãos, o que parece não acontecer. Na verdade, os
literalistas preferem, ou inventar mil “soluções” vazias de significado lógico,
ou, com uma indolente ingenuidade, fechar os olhos para essas dificuldades, com
a desculpa de que devemos acredita nessas coisas “pela fé”.
Eu tenho uma boa
história sobre esse senso de curiosidade. Há algumas semanas atrás, eu estava
lendo com minha esposa (que não tem uma mente nem um pouco teológica) o livro
do Êxodo (sim eu leio a Bíblia, e recomendo), mais especificamente a narração que
conta sobre as dez pragas derramadas no Egito. Lá pelo capítulo nove, ao ler a
sexta praga, minha esposa notou algo, que nem eu, em meus mais de dez anos de
estudos teológicos, havia percebido antes, o gado dos egípcios fora tomado de úlceras.
Essa informação faria todo o sentido com a narração se não fosse o fato de que
na praga anterior TODO o gado dos egípcios havia morrido. A pergunta da minha
esposa foi inevitável: “Como pode isso, se os animaizinhos (é assim que ela
costuma chamar as coisas) já foram mortos na praga anterior, como eles agora
foram tomados de úlceras?” E o pior é que, mais a frente, o gado (que havia
morrido, e depois ferido por úlceras) é ferido de novo com a chuva de saraiva.
Você acha que eu tive resposta para dar a minha esposa?
Veja, eu não
quero com isso desqualificar o texto do Êxodo, ele tem seu valor para a fé, mas
eu preciso demonstrar como, mesmo alguém sem nenhuma intimidade com a teologia,
é capaz de perceber que uma leitura literal da Bíblia pode criar muita
confusão.
Ao contrário
disso, entendo que ser fiel ao texto tem haver com deixar que a Bíblia cumpra
seu papel revelador da vida e do amor divinos, em, para e através de nós (sobre
essa relação falarei mais em outro texto), independente se essa ou aquela
informação histórica e científica faça sentido hoje. Como ensinou com precisão
Andrés Torres Queiruga, é deixar a Bíblia, como uma parteira, agir em nossa
vida de forma que a "dar à luz" a nossa fé. Por isso podemos afirmar
que a fé vem pela ouvir, e ouvir a Palavra de Deus. E isso meus amigos, não tem
nada haver com ser literalista.
É claro que o
literalismo teve sim seu lugar na história da teologia, numa época onde a própria
Bíblia era considerada fonte de conhecimento científico. No entanto, após o
iluminismo, que abriu as portas para os métodos de pesquisa científica modernos,
manter o literalismo, por exemplo, de textos como da criação em seis dias e do
dilúvio universal, é querer manter a Bíblia num grupo de documentos científicos
do qual ela não faz mais parte. Aliás, é exatamente a insistência nisso que,
além de gerar um anacronismo que expõe a fé cristã ao ridículo, tem levado
centenas de pessoas em direção ao ateísmo e niilismo, inclusive no Brasil (quem
visita com frequência o universo dos vlogs do you tube consegue verificar isso
com clareza).
Por fim, eu estou
plenamente ciente que muitos cristãos estarão perplexos e se perguntando se
essa releitura do significado da Bíblia não descartaria conceitos
"fundamentais" da estrutura teológica cristã, como a ideia do pecado
original ou da inerrância e inspiração bíblicas. A essa questão tenho duas
coisas a dizer.
Em primeiro
lugar, é bom que fique claro, que esse desconforto em inviabilizar certas
afirmações tidas como “vacas sagradas”, ocorre, principalmente, porque ao longo
da história a formação teológica cristã ficou estreitamente ligada, e até mesmo
condicionada, a uma leitura literalista, especialmente após Lutero e sua sola scriptura. A teologia da graça, por
exemplo, foi elaborada de maneira que sua origem desemboca-se diretamente no
Éden e no pecado de Adão. Cristo e Adão foram amarrados numa relação
interdependente, onde o sentido do primeiro só se realiza se aceitarmos a
literalidade do segundo. Nesse esquema, a afirmação da cientista adventista faz
todo o sentido, no entanto, é justamente nesse ponto que a teologia, se é que
ela pretende continuar relevante, deveria “virar a chave”. Uma teologia presa
em uma leitura estática da Bíblia, ou mesmo de algum dogma, simplesmente não
poderá cumprir seu papel que é de dinamizar, de baixo para cima, a fé, de forma
que ela possa ser comunicada em qualquer época da história.
Em segundo
lugar, ao contrário do que possa se pensar, quando eu defendo uma leitura não
literal da Bíblia, eu não estou pondo em dúvida sua integridade. Eu não digo
que devemos renunciar as ideias de inerrancia e inspiração, mas, devemos sem
demora dar um novo significado a esses termos (para que o texto não fique
demasiadamente longo, tratarei desses dois termos em um texto posterior).
Defender a integridade da escritura, não significa abster-se de critica-lo. Aliás,
uma leitura acrítica da Bíblia nunca foi geradora de vida dentro da igreja, ao
contrário. O que a história da igreja mostra é que, geralmente onde estava o
pensamento acrítico, também morava a superstição, o retrocesso científico e o
despotismo religioso, Galileu que o diga.
William de
Oliveira
Realmente, relativizar ou ter uma outra ótica sobre alguns textos bíblicos incomodam alguns cristãos de tal forma que se sentem caindo no ateísmo. O ortodoxismo me parece uma vida chata e mergulhada na inércia. À essas pessoas, recomendo Milton Schwantes.
ResponderExcluirBoa dica, em especial o livro "Projetos de esperança"
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