terça-feira, 22 de outubro de 2013

A Bíblia e o Literalismo


Um dia desses, li uma entrevista com uma cientista adventista que defendia que o criacionismo era a única “ciência” capaz de explicar as origens do universo sem desqualificar os textos bíblicos. Segundo ela, se a Bíblia ensina sobre o Éden, isso deve ser verdade, e não dá para ser teísta, sem também crer no criacionismo. É evidente que esse tipo de afirmação sempre partirá do pressuposto de que devemos, para sermos cristãos, ler a Bíblia de forma literal. Literalismo e cristianismo, nessa perspectiva, são irmãos siameses. Mas será mesmo que isso é verdade? Será que a Bíblia só é a palavra de Deus se for lida literalmente? Eu acredito que não. Na verdade, eu acredito que existe uma considerável diferença entre ser fiel ao texto bíblico, tendo-o como palavra viva de Deus para nós (e se é viva não pode ser estática), e ser literalista. Vejamos.

O literalista crê que, para a Bíblia ser a palavra de Deus, toda a informação contida nela deve ser lida e compreendida de maneira literal. Por exemplo, quando ela afirma que Deus criou o mundo em seis dias, é por que assim foi, ainda que a geologia já tenha provado “por a mais b” que isso é impossível. É claro que muitos cristãos diante das dificuldades desse dado, procuram minimizar o problema com soluções, a meu ver, tão duvidosas quanto à primeira, como a ideia que defende o dia divino como mil anos terrestres. Mas o fato, é que eu poderia citar muitos outros problemas insuperáveis (a menos que façamos uma confrontação honesta desses problemas), como o aparecimento do Sol apenas no quarto dia, o que per si já constitui uma incoerência lógica, ou o “justo” juízo divino sobre a cobra (um animal irracional) “possuída” pelo diabo. O mais curioso é que, tudo isso deveria causar, no mínimo, alguma curiosidade nos cristãos, o que parece não acontecer. Na verdade, os literalistas preferem, ou inventar mil “soluções” vazias de significado lógico, ou, com uma indolente ingenuidade, fechar os olhos para essas dificuldades, com a desculpa de que devemos acredita nessas coisas “pela fé”.

Eu tenho uma boa história sobre esse senso de curiosidade. Há algumas semanas atrás, eu estava lendo com minha esposa (que não tem uma mente nem um pouco teológica) o livro do Êxodo (sim eu leio a Bíblia, e recomendo), mais especificamente a narração que conta sobre as dez pragas derramadas no Egito. Lá pelo capítulo nove, ao ler a sexta praga, minha esposa notou algo, que nem eu, em meus mais de dez anos de estudos teológicos, havia percebido antes, o gado dos egípcios fora tomado de úlceras. Essa informação faria todo o sentido com a narração se não fosse o fato de que na praga anterior TODO o gado dos egípcios havia morrido. A pergunta da minha esposa foi inevitável: “Como pode isso, se os animaizinhos (é assim que ela costuma chamar as coisas) já foram mortos na praga anterior, como eles agora foram tomados de úlceras?” E o pior é que, mais a frente, o gado (que havia morrido, e depois ferido por úlceras) é ferido de novo com a chuva de saraiva. Você acha que eu tive resposta para dar a minha esposa?

Veja, eu não quero com isso desqualificar o texto do Êxodo, ele tem seu valor para a fé, mas eu preciso demonstrar como, mesmo alguém sem nenhuma intimidade com a teologia, é capaz de perceber que uma leitura literal da Bíblia pode criar muita confusão.

Ao contrário disso, entendo que ser fiel ao texto tem haver com deixar que a Bíblia cumpra seu papel revelador da vida e do amor divinos, em, para e através de nós (sobre essa relação falarei mais em outro texto), independente se essa ou aquela informação histórica e científica faça sentido hoje. Como ensinou com precisão Andrés Torres Queiruga, é deixar a Bíblia, como uma parteira, agir em nossa vida de forma que a "dar à luz" a nossa fé. Por isso podemos afirmar que a fé vem pela ouvir, e ouvir a Palavra de Deus. E isso meus amigos, não tem nada haver com ser literalista.

É claro que o literalismo teve sim seu lugar na história da teologia, numa época onde a própria Bíblia era considerada fonte de conhecimento científico. No entanto, após o iluminismo, que abriu as portas para os métodos de pesquisa científica modernos, manter o literalismo, por exemplo, de textos como da criação em seis dias e do dilúvio universal, é querer manter a Bíblia num grupo de documentos científicos do qual ela não faz mais parte. Aliás, é exatamente a insistência nisso que, além de gerar um anacronismo que expõe a fé cristã ao ridículo, tem levado centenas de pessoas em direção ao ateísmo e niilismo, inclusive no Brasil (quem visita com frequência o universo dos vlogs do you tube consegue verificar isso com clareza).

Por fim, eu estou plenamente ciente que muitos cristãos estarão perplexos e se perguntando se essa releitura do significado da Bíblia não descartaria conceitos "fundamentais" da estrutura teológica cristã, como a ideia do pecado original ou da inerrância e inspiração bíblicas. A essa questão tenho duas coisas a dizer.

Em primeiro lugar, é bom que fique claro, que esse desconforto em inviabilizar certas afirmações tidas como “vacas sagradas”, ocorre, principalmente, porque ao longo da história a formação teológica cristã ficou estreitamente ligada, e até mesmo condicionada, a uma leitura literalista, especialmente após Lutero e sua sola scriptura. A teologia da graça, por exemplo, foi elaborada de maneira que sua origem desemboca-se diretamente no Éden e no pecado de Adão. Cristo e Adão foram amarrados numa relação interdependente, onde o sentido do primeiro só se realiza se aceitarmos a literalidade do segundo. Nesse esquema, a afirmação da cientista adventista faz todo o sentido, no entanto, é justamente nesse ponto que a teologia, se é que ela pretende continuar relevante, deveria “virar a chave”. Uma teologia presa em uma leitura estática da Bíblia, ou mesmo de algum dogma, simplesmente não poderá cumprir seu papel que é de dinamizar, de baixo para cima, a fé, de forma que ela possa ser comunicada em qualquer época da história.

Em segundo lugar, ao contrário do que possa se pensar, quando eu defendo uma leitura não literal da Bíblia, eu não estou pondo em dúvida sua integridade. Eu não digo que devemos renunciar as ideias de inerrancia e inspiração, mas, devemos sem demora dar um novo significado a esses termos (para que o texto não fique demasiadamente longo, tratarei desses dois termos em um texto posterior). Defender a integridade da escritura, não significa abster-se de critica-lo. Aliás, uma leitura acrítica da Bíblia nunca foi geradora de vida dentro da igreja, ao contrário. O que a história da igreja mostra é que, geralmente onde estava o pensamento acrítico, também morava a superstição, o retrocesso científico e o despotismo religioso, Galileu que o diga.
 

William de Oliveira

  

 

2 comentários:

  1. Realmente, relativizar ou ter uma outra ótica sobre alguns textos bíblicos incomodam alguns cristãos de tal forma que se sentem caindo no ateísmo. O ortodoxismo me parece uma vida chata e mergulhada na inércia. À essas pessoas, recomendo Milton Schwantes.

    ResponderExcluir
  2. Boa dica, em especial o livro "Projetos de esperança"

    ResponderExcluir